domingo, 21 de fevereiro de 2010

Como sentimos a Cultura....


Acreditava em Deus e em outras coisas invisíveis
Dizia sempre sim aos seus senhores infalíveis
Belchior (Pequeno Perfil de um Cidadão Comum)

Foi de um olhar cabisbaixo produzido num rosto impotente de um jovem pobre, destes que a origem mal preenche dois ou três galhos de uma árvore genealógica, que me veio à percepção da força descomunal e opressiva que a história produz sobre os ombros de um homem comum. Como, ao longo de séculos de história no Brasil, este homem ordinário, jovem, velho, sertanejo, urbano, trabalhador, foi progressivamente docilizando-se e baixando a face diante do Olhar, da Voz e da Força autoritária das elites brasileiras. Como, ora com discursos, indumentárias, distinção intelectual, saberes científicos e, em muitos casos, com a força institucional, tentou vergar o Olhar, a Voz e o Corpo do brasileiro ordinário.
Ora, essa força, que de mágica não tem nada, foi produzida por uma sistemática desvalorização da vida material e simbólica deste ser. Impossibilitado de reconhecer-se em tudo que o cerca, seu olhar desloca-se para baixo ou para o infinito, sua voz silencia-se ou sussurra, seu corpo curva-se ou deforma-se a cada novo obstáculo. Sem perceber Ele caminha para morte sem ter visto a vida.
Numa primeira análise, esse projeto foi tão eficiente que qualquer ação rebelde deste “corpo” foi criminalizada. Quando não, a indústria cultural pasteuriza e depura a vitalidade de sua manifestação, restando-nos um simulacro de experiência humana, que por ele foi acumulada e, potencialmente, refinada há séculos. Diante de tal situação, parece-nos quase impotente narrar a vida de um ser que agora se projeta como um espantalho a assustar corvos tolos. Quem o conhece bem, dele não teme e até ri.
Cada vez mais, costumes, crenças, danças, poesias, artes e ofícios, expressões de vida viraram algo risível (ridículo), em programas matutinos e noturnos que se denominam “populares”. O olhar para si, sua história o envergonha, atormenta, amesquinha, fragiliza, desonra, acanha, retrai, silencia, ofusca e, por fim, imobiliza. O que se produziu de melhor é tão deslocado que fica irreconhecível e impraticável pelos seus criadores, seja pelo novo espaço ofertado, pela descontextualização cultural ou mesmo pela espetacularização. O vivido é traduzido num dicionário globalizante que resulta numa sentença quase inteligível e desconexa.
Nada faz muito sentido – cientista virando beato para validar a experiência religiosa; a miséria virando belo pelo olhar estetizante de uma percepção que só suporta ver a realidade enfeitada de técnicas e cromagens atraentes; a “experiência popular” transformada em autóctone, não se conectando ao universo humano. Há uma produção de deslocamentos anacrônicos em quase tudo apresentado. Há um ser em vida hoje, que padece de não pertencer ao tempo social vivido, sendo aprisionado em túnel do tempo, sem passagem para o futuro e nem para o passado.
Todo adereço do novo mais parece o macaquear do moderno do que o direito de vivê-lo. Há um esvaziamento desde homem a ponto de quererem desumanizá-lo, suas dores são suportáveis, seus amores e desamores menos intensos, seu sexo menos erótico, sua sensibilidade é tão rústica que se torna impenetrável, sua força, quando usada, é considerada violência irracional. Esse homem comum, que ao olhar do dominador cada vez mais é desumanizado, não tem direito à História, nem de vivê-la e muito menos de contá-la.
A experiência humana que queremos pensar não é essa. Também não queremos cangaceiros virando heróis; padre sendo reabilitado; sertanejo de verso pobre sendo poeta maior; vencido tendo sua história contada só por uma inversão epistemológica. Não queremos a cultura do exótico ou do inusitado, não procuramos a novidade elucidativa. Não produziremos, pelo menos, conscientemente, transposições conceituais por simples arranjo teórico. Não temos a ilusão de uma linhagem de sujeito histórico revolucionário, mas acreditamos que aos mortos, aos injustiçados, oprimidos e almas sofridas do passado, que não têm a eternidade para deitar-se, devem ter, na historiografia, o “tribunal de justiça (Gehör) que a humanidade atual, ela própria passageira, pode oferecer aos protestos (Anklagen) que vêm do passado”[1]. Entendemos que nossa missão é produzir uma narrativa do vivido, em que “cada vítima do passado, cada tentativa de emancipação, por mais humilde e ‘pequena’ que seja, será salva do esquecimento e ‘citada na ordem do dia’, ou seja, reconhecida, honrada e rememorada”[2]. É com esse espírito que nos encaminhamos em direção aos mortos, com a certeza de que sua experiência nos fez levantar o olhar e encarar, na mesma linha horizontal, a força opressiva que ora nos tenta curvar. 
(TRECHO DA INTRODUÇÃO DA MINHA TESE)


[1] HORKHEIMER apud LÖWY, Michael. Walter Benjamim: aviso de incêndio. São Paulo, Editorial Boitempo, 2005, pp. 50-51.
[2] LÖWY, Michael. Walter Benjamim: aviso de incêndio. São Paulo, Editorial Boitempo, 2005
pp. 55.

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