quarta-feira, 3 de março de 2010

História: um presente ausente

Transcrevo aqui um texto que produzi ainda nos primeiros semestres da graduação de história na Federal do Ceará. Importante registrar que não alterei nada, tem uma escrita ingênua e pertencente a um momento específico da minha formação, mas pra quem leu o texto como entendemos a cultura, verá uma linha contínua e suave de nossa preocupação com o homem comum, esse homem do dia-a-dia.

História: um presente ausente

Um João nos para numa praia qualquer da bela Fortaleza e pede-nos o que comer. Eternos desconfiados que somos por “conhecer nossa realidade”, pensamos ser mais um golpe. Inicialmente, ironizamos e até certo ponto o ignoramos, pois já estava a atrapalhar nossa cervejinha. Mas, como que tomados por um espírito humanista, sentimos a necessidade de ajudar aquele homem. Contou-nos que vinha do interior do Estado e estava com a família (mulher e filhos) a passar fome aqui na capital, enquanto aguardava uma ajuda do governo. Pedimos que sentasse, porém, como não poderia deixar de ser, nossa desconfiança ainda analisava seu discurso. No entanto, suas mãos cheias de calos nos fizeram parar. Como que positivistas, elegemos suas mãos documentos e elas falaram por si só. E mais, enquanto historiador social, vimos ali um excluído, um ser a-histórico, sem registro oficial, e se é algo, é um número nas estatísticas oficiais da fome. Precisamos fazer a história do João, não podemos deixá-lo sem registro, vamos garantir sua passagem pela história.
Caros colegas, depois de pensarmos em tudo isso, percebemos que João estava indiferente a nós, como se nossa interrogações (como estava vivendo? Como mantinha sua vida longe de sua terra?) somente confirmasse-me sua necessidade de si e sua família. Depois de comer um sanduíche e tomar seu refrigerante, que não lhe saciaram a fome, João partiu. Partiu deixando uma dúvida: como fazemos sua história? Pois, no presente, nada mais podemos fazer por ele. Então, vamos esperar passar do tempo para podermos torná-lo objeto histórico.
Não acreditamos ser possível nos colocarmos diante da discussão de como fazer história (João ou D. Pedro), sem antes pensarmos que história estamos nos propondo a fazer. Não nos deteremos aqui a discutir qual a metodologia mais aplicável, dos modismos da história nova e seus historiadores, das dúvidas de que “verdades”nos fala o passado, da história-ciência ou história disciplina. Gostaríamos de nadar contra a maré destes debates.
Mas antes de fazermos isso, precisamos trazer à tona uma postura comum a todas essas formas do fazer histórico – o distanciamento – que coloca o objeto de estudo no mínimo a vinte ou trinta anos de nós. O presente para esse conhecimento histórico não interessa, até porque o presente não é mais reflexo de um passado. O passado é a ferramenta de nosso trabalho, é mais fácil nos revoltamos com a seca de 1877 do que com a de 1998, com a violência da ditadura militar do que com as chacinas semanais e quantitativamente mais representativas de hoje. Pensando nisso, recordo o poema de Drummond que diz “o tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”. Colegas, nossos olhos só vêem as costas da realidade. O presente importa, analisemo-lo também. Com isso, não quero que sejamos “autobiógrafos” de nossa geração. O presente nos pertence.
Há muito tempo existe uma discussão de como o historiador tem que lidar com seu presente. Deve estar engajados nos movimentos sociais, participar de partidos políticos, não ser essencialmente acadêmicos. Fala-se do profissional, do seu relacionamento pessoal com o presente, e nunca a sua produção historiográfica. Não é permitido trabalhar o dia-a-dia na historiografia. O caso de João pode ser historicizado: sua relação com a seca, o abandono do estado, seu êxodo, sua vida social rompida e seu drama mais complexo – a fome.
Colegas, tenhamos a clareza de não nos distanciarmos muito da nossa realidade, e registremos nosso presente, não esperemos somente por jornalistas, literatos e documentos oficiais e tantos outros. Sejamos também participantes da criação de nossas fontes. Deixemos registradas nossa apreensão e análise dos fatos. Não permitem que continuemos a ser meros explicitadores das possibilidades de um passado.
Voltemos a pensar na história de João ou de João na história. Ele necessita sim, não ser ignorado como sempre fizemos, precisa que saibamos que ele existe. Na verdade, João precisa de condições para viver melhor (trabalho, terra e justiça social). O mais são elucubrações de alguém que não sabe o que fazer com o seu presente. (um historiador qualquer).

Um comentário:

  1. Vou entender seu "ingênuo" que antecede o texto como algo positivo. Então que continuemos ingênuos!!!!
    Que tenhamos milhões desses por ai, espalhados em todos os cantos, em todas as repartições públicas, em todos os escalões de governos, sobretudo nos primeiros, em todos caixas de supermercados, bancos, lotéricas, lojas, faculdades.... que as atendentes dos diversos ramos sejam ingenuas, que diretoras,professores, coordenadores, reitores, alunos também sejam ingênuos. Que nos sistemas; judiciario, legislativo, executivo tenhamos a predominancia de pessoas ingenuas, nas promotorias porque não?!
    Zilmar...parabéns pra vc cara....seu pensamento, suas idéias, seus valores, sua trajetória, suas conquistas, muito nos orgulha conhecermos uma pessoa como vc.
    Uma abraço.
    Adriano.

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